Agora, daqui de cima, ele vê o reflexo de dois corpos. O vidro escuro e embaçado torna o desenho um só. Um corpo disforme, defeituoso. Aí ele te olha bem fundo. Você, apoiada no peito dele, só a luz da TV, distante, ilumina teu rosto. Teu olhar diz a ele que já sabe de tudo, que sabe do fim, da gritaria na porta da casa, da maquiagem escorrendo dignidade em preto, borrando toda tua vida com uma coragem quase latina, irracional.
E sem nenhuma palavra, ele se espanta com vosso final tão bem delineado, se espanta que você saiba de todos os planos dele para arruinar tudo, ainda que não exista plano. E que mesmo sabendo do fim, da mágoa, das cartas; sabendo que ele é a maior decepção da porra da tua vida inteira, você ainda esteja lá. Ele tenta dizer que a vida é assim mesmo, que estamos sempre tentando preencher esse vazio que é o nosso próprio vazio.
Esse vazio que somos nós mesmos, buscando o motivo para continuar, buscando alguém para tampá-lo. Mas ele não diz nada, ele não consegue. Você só tampa a boca dele, assente com a cabeça e derruba uma única lágrima. 'É necessário ser econômica para as horas do pranto' você pensa. E de vez em quando, ele volta nesse quadro. Também é necessário exorcizar demônios de tempos em tempos.