segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

e você dizia

'Não foi sempre assim. Antes nossas pupilas dilatavam e as luzes avermelhadas da noite pareciam encher o céu com fogo. Antes o estourar do champagne e o assoprar das velas eram parte de um círculo de planos, do espetáculo das descobertas, de encantamento que vinha abraçar. Sinto falta dos abraços. Sinto falta do melhor vinho ser aquele que o trocado pode comprar. A noite só começou e, mais vazio que a garrafa de rum, meu peito ouve silêncios. Calaram as ruas. Mataram a poesia com 20 mg de Prozac no leite das creches da cidade. Todos só ouvem silêncios'.

Durmo e acordo no sofá de um quarto-sala da zona Sul do Rio. Levanto tonto e acendo um cigarro. Entro debaixo do chuveiro com o cigarro e visto a camiseta amarrotada, adivinhem, com o cigarro. Nem coca nem pedra. É a solidão, permeada por uma meia dúzia de adjetivos sem flexão de gênero, número e grau, o vício mais perigoso do homem.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

il desiderio

Ensino pra teus dedos o caminho. Cruzo a tua rota, estilhaço com gosto. Viro a chave e desligo o motor do carro. Quero silêncio pra ouvir mais de perto tua respiração. Quero o calor de um ar não-condicionado que traduza com mais fidelidade o momento desenhado pela sombra das árvores. Só os taxistas fatigados rodando, sempre rodando, e os morcegos famintos, rodando, sempre rodando, são testemunhas dos nossos passos de valsa mal ensaiados. Luto. Peço pra ir, pra ficar, pra vir comigo. Quero esticar o tempo, atrasar o nascer do sol e te ver dormir do meu lado. Un pó’ ubriaco, torno a casa con il tuo profumo sulla mia camicia. Sei bella.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

fora do mapa

Até hoje acho graça do jeito como a gente se conheceu. O convite pro cinema, seu nariz meio torto iluminado pela tela grande e eu querendo largar tudo, largando tudo pra ficar contigo. Assim, num impulso, sabendo que era besteira e querendo mesmo assim. Não sei quando foi, talvez entre tua volta da Espanha e a ida pra Inglaterra. Canadá? Não me lembro. Só tenho na memória o banco da praça, teu sorriso soluçado. De como você se irritava com o fato de eu não ter cinzeiro aqui em casa, sempre batendo a bituca na minha coxa, formando um buraco grande que agora quer toda minha perna.
Juntando tudo, devem ter sido no máximo uns sete, oito meses. Todas as tuas idas e as minhas vindas. Mas gosto de pensar que foram uns sete ou oito anos. Gosto de lembrar de como você sentia vergonha pelo meu jeito relaxado perto dos teus amigos de nobres famílias sul-sancaetanenses. De como você quase me matou quando subi naquela mesa meio bêbado, pedindo licença pra poder fumar um cigarro no frio lá de fora. E a gente brincava e fazia apostas de quem iria cair fora primeiro, quem tomaria a decisão de soltar a mão do outro provando ser forte, tentando ser forte.
Me acostumei cedo em te ver partir, pois sabia que sempre seria assim. Você partindo e eu te olhando entrar na sala do embarque internacional sem olho marejado, só meio atônito, quieto. Você sem olhar pra trás, sem nada mais que um 'a gente se vê por ai, cat'. Nas tuas viagens, Roma, Holanda, Austrália, nunca existiu uma escala minha, nunca fui teu porto, e acho que a gente sempre se entendeu por isso. Não sei amar, nem você. Aprendi a exercitar a memória, decorar teus perfumes e nossos beijos pra lembrar quando você estivesse em fusos distintos.

Um dia você me mandou um e-mail perguntando se saudade era diferente de amor. Nunca soube responder, mas são nos dias em que recebo uma mensagem no celular com todos os teus erros de português tão seus me perguntando 'voltei. tô aqui perto da tua casa, tá ai?', que o peso da rotina vai embora e tudo é leve. Como nosso não amor, como a gente deitado no chão do teu quarto ouvindo 'Tonight, Tonight'. Não é preciso que seja longo para ser belo, e é no excesso da distância e na ausência do tempo que vamos seguindo. Ainda de mãos dadas.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

a luz da sala tinha queimado

e enquanto eu tentava convencer a Renata dos efeitos positivos da maconha no sexo, ela procurava um disco do chico buarque na estante. Eu falava rápido, porque aprendi que as pessoas prestam mais atenção em gente que fala rápido. Tem que correr pra entender tudo, mesmo que o assunto seja chato. Ela não dizia nada, não concordava nem discordava, só continuava procurando o disco e me olhando de um jeito sexualmente satisfeito com as possibilidades que haviam sido criadas em uma terça-feira.

Eu só convidei a Renata para conhecer os trinta e poucos metros quadrados da minha caverna porque vi ela comendo biscoito outro dia na loja de discos, que é onde eu sempre via a Renata de blusa branca e shortinho e tatuagens que o avô dela não gosta. eu não conheço o avô dela, mas sei que ele não gosta. Ela comia biscoito como o papagaio do meu amigo Pedro. É difícil explicar, mas o movimento era o mesmo e era tão bonito.. virando a cabeça de lado, de lado, devagar, até pegar a bolacha com o bico (a boca), ir mandando pra dentro do estômago e por fim dando uma chacoalhada pra deixar tudo arrumado.

Ela pouco se importava com o apartamento. Não notava, por exemplo, que eu tenho um atabaque e um agogô pendurados na parede, trazidos diretamente de Nyakozoba pelo meu amigo africano MAZA. Eu acelerava cada vez mais as palavras, mas ela seguia sem notar minha presença e a impressão que eu tinha é que ela nem respirava mais, só procurava o disco do chico. eu acelerava e já dizia tudotãojuntoquenemeuseimaisoquedizia. Engasguei e tomei um copo d'água que guardo na janela, de quando chove.

Resolvi pegar na mão dela e dizer 'olha, eu sei que você queria que eu fosse o chico, e na real, eu mesmo queria ser o chico, porque ele é um cara legal, tem os olhos claros e eu sempre quis ter os olhos claros, e ainda ele deve ter um monte de amigos geniais, deve ser o cara que anima o churrasco e eu queria falar no ouvido de todas as mulheres do mundo que nem ele, mas olha .. eu posso escrever uma poesia pra você agora, vai ser só pra você e eu posso assinar um papel dizendo que ela é sua'. Ela finalmente percebeu minha presença. Deu um passo para frente e deixou o rosto perto do meu numa distância que ainda poderia escapar de um carinho, mas que fazia o perfume chegar ao meu nariz com a segurança de quem sabe o que um perfume pode casualmente realizar. 'então escreve', e eu disse 'olha pra isso eu tenho que fumar e você tem que fumar e nós dois só seremos duas forças da natureza e ninguém vai sentir culpa, nem nada, só desejo e ai eu poderei escrever uma poesia com meus dedos, e sua boca e seu peito e seu cabelo'. Ela fez que sim, deitou na cama e encontrou, debaixo do travesseiro, o disco daquele filho da puta que eu ainda ouço sei lá porquê. e foi embora, com o mapa do tesouro nos braços, sem dizer adeus e o sorriso de lolita no bico. era um domingo bonito de sol no Rio, o ano era 84 e eu tinha uma bicileta.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

landinho e maria

o que eu digo pra eles? pensei enquanto pegava '1933 foi um ano ruim' da estante. sai e coloquei o restinho do perfume que havia sobrado no frasco. olhava as roupas no armário, a calça com o vinco, tudo passado, perfeito. sentei na cama, fria como antes, mas ainda macia. procurei no meio das gavetas a carta do primeiro amor, encontrei no acaso a medalha do futebol e revi uma foto com pessoas que já não me lembrava mais.

a camisa do time com o autógrafo do craque, agora um pouco mais desbotado. pequena demais para vestir, grande para todas as lembranças dos domingos de sol e macarrão. o CD dos Beatles que ganhei em um amigo secreto do colega de trabalho que já deve ser um pai parcialmente dedicado. tentei ouvir no pc. riscado, concluí.

ri do 'eu te amo eternamente' na declaração infantil do segundo amor, encontrei a pulseira comprada na praia que arrebentou pela realização do pedido mais inocente. desci a rua e fui comprar uma coca no boteco do cláudio. fechado. nem sei o que virou. dei a volta pela rua de trás, fiz o caminho mais longo só para passar na frente da quadrinha, mas encontrei apenas um prédio quatro quartos, piscina, churrasqueira, sala de musculação, cinema por 90 parcelas de oito quatro sete alguma coisa. na frente da casa da Maitê um cartaz de aluga-se. nem toquei.

dei bom dia ao porteiro que não me conhece. entrei novamente no quarto. vi um dvd do meu time campeão, um 'Cartas de Vinícius' na cômoda e uma foto minha sorrindo, levemente bêbado. era isso então. era a sombra para os amigos, a lembrança para os amores e o quarto de um falecido filho, amado filho, que tinha que encarar aquilo tudo cheio de pó e nostalgia e ainda descobrir quando se olhava no espelho quem diabos era. para onde diabos iria e como tudo isso acabaria realmente.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

outro elo

A culpa da solidão são os onze andares e um elevador emperrado. Quando não emperrado, lento por convicção partidária. A culpa da solidão é de um modelo defasado de celular, a falta de créditos, a memória sempre cheia. Não podemos ignorar também, que a culpa da solidão é da ausência de um perfil substancialmente mais interessante no facebook, com fotos tiradas pelo iphone e de presença mais freqüente no emeesseene. Só vagalumes sobem aqui no frio. Caço capivaras que descem correndo as escadas querendo roubar meu lixo. MEU LIXO. Converso com o moço da tevê, mas de vez em quando ele não responde. “Superficial e rápido. Por quê com a vida ia ser diferente?”

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

profeta pedro

foi num domingo, às 15 horas da tarde, com o sol ainda brilhando, que Pedro decidiu oferecer todos os seus dentes pela Liandra. os dentes do Pedro, que havia fumado dos 15 aos 22, não valiam muita coisa. uma queda de bicicleta aos 11 fizera com que o canino posterior fosse quebrado a metade. quantos dentes possui um ser humano digno? perguntou ao Miranda, que respondeu com pouca certeza. 'acho que uns 28. tem que ser par né'. Pedro resolveu oferecer 27 e meio aos santos, não se rouba um santo e se vive impunimente.

quanto mais o Pedro olhava para o sol, menos sentia falta dos seus dentes e já começava a imaginar uma vida simples, de brilho de sol, água e purê de batata. ele não queria ouvir conselhos odontológicos. e pouco importava se seu sorriso nas fotografias sofreria um decréscimo substancial. Pedro nunca foi de sorrir muito. só aquele meio sem graça, obrigatório, quase agressor. E ai o Pedro ri porque ele, um ser pensante, um intelectual, um filósofo do interior, está oferecendo todos os seus dentes aos deuses pela Liandra, que não pensa, não filosofa, mas é macia como o diabo.

a boca de Pedro ainda formigava quando chegou para Liandra e disse que a amava mais que são francisco de assis amava os animais. e esses dentes eram dela. os dentes, a boca, os olhos e tudo. a Liandra riu. sem dentes, Pedro parecia um macaco gemendo ruídos estranhos. Pedro fazia o som do vento passando debaixo da porta de madeira, molhado pelo suor e dominado pelo desespero. subiu até a pedra mais quente, não a mais alta, mas a mais quente. Pedro e a pedra. e jogou todos no mar. Pedro, o filósofo sem dentes, fala como um verdadeiro profeta quando o som do vento que sai da sua boca se encontra com o barulho das ondas do mar. aquelas pequenas joias amareladas não fazem falta, ele sabe bem. todos estão surdos.

minha alma chora o teu sangue derramado.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

meu box não embaça

tanto tempo passou, tantos foram e voltaram. até eu fui. um pedaço meu de lembrança de porre, hoje caminha por ruas da Irlanda. outro de amizade, espera por uma visita na austrália. os cabelos e a barba cresceram mais. menos a esperança. não é por nada, me apeguei a uma caminhada humilde. o sol tem mais valor e queima minha pele branca. meus pais me amam mais, na mesma medida em que meus defeitos se fazem menos presentes. um menino de rua passa e pergunto se ele quer dividir o frango e o pão. ele aceita e eu fico feliz. esqueço porquê vim, não importa, só importar ir, voltar. dizem que eu tive coragem. não é nada. coragem tem o calango. eu só tinha uma passagem e a necessidade de sentir frio, medo e fome. o reflexo no espelho mantém a dúvida. não sabe se reconhece a si mesmo. o carnaval não chegou, mas já vai acabar. e eu longe. nem o vento, que prometia soprar forte em março, anima planos e nostalgias. o que entristece não são os quilômetros de distância dos que estão longe. são as milhas que separam todos do baú onde me enterrei, esperando você encontrar e cavar com as unhas vermelhas.