terça-feira, 18 de outubro de 2011

a luz da sala tinha queimado

e enquanto eu tentava convencer a Renata dos efeitos positivos da maconha no sexo, ela procurava um disco do chico buarque na estante. Eu falava rápido, porque aprendi que as pessoas prestam mais atenção em gente que fala rápido. Tem que correr pra entender tudo, mesmo que o assunto seja chato. Ela não dizia nada, não concordava nem discordava, só continuava procurando o disco e me olhando de um jeito sexualmente satisfeito com as possibilidades que haviam sido criadas em uma terça-feira.

Eu só convidei a Renata para conhecer os trinta e poucos metros quadrados da minha caverna porque vi ela comendo biscoito outro dia na loja de discos, que é onde eu sempre via a Renata de blusa branca e shortinho e tatuagens que o avô dela não gosta. eu não conheço o avô dela, mas sei que ele não gosta. Ela comia biscoito como o papagaio do meu amigo Pedro. É difícil explicar, mas o movimento era o mesmo e era tão bonito.. virando a cabeça de lado, de lado, devagar, até pegar a bolacha com o bico (a boca), ir mandando pra dentro do estômago e por fim dando uma chacoalhada pra deixar tudo arrumado.

Ela pouco se importava com o apartamento. Não notava, por exemplo, que eu tenho um atabaque e um agogô pendurados na parede, trazidos diretamente de Nyakozoba pelo meu amigo africano MAZA. Eu acelerava cada vez mais as palavras, mas ela seguia sem notar minha presença e a impressão que eu tinha é que ela nem respirava mais, só procurava o disco do chico. eu acelerava e já dizia tudotãojuntoquenemeuseimaisoquedizia. Engasguei e tomei um copo d'água que guardo na janela, de quando chove.

Resolvi pegar na mão dela e dizer 'olha, eu sei que você queria que eu fosse o chico, e na real, eu mesmo queria ser o chico, porque ele é um cara legal, tem os olhos claros e eu sempre quis ter os olhos claros, e ainda ele deve ter um monte de amigos geniais, deve ser o cara que anima o churrasco e eu queria falar no ouvido de todas as mulheres do mundo que nem ele, mas olha .. eu posso escrever uma poesia pra você agora, vai ser só pra você e eu posso assinar um papel dizendo que ela é sua'. Ela finalmente percebeu minha presença. Deu um passo para frente e deixou o rosto perto do meu numa distância que ainda poderia escapar de um carinho, mas que fazia o perfume chegar ao meu nariz com a segurança de quem sabe o que um perfume pode casualmente realizar. 'então escreve', e eu disse 'olha pra isso eu tenho que fumar e você tem que fumar e nós dois só seremos duas forças da natureza e ninguém vai sentir culpa, nem nada, só desejo e ai eu poderei escrever uma poesia com meus dedos, e sua boca e seu peito e seu cabelo'. Ela fez que sim, deitou na cama e encontrou, debaixo do travesseiro, o disco daquele filho da puta que eu ainda ouço sei lá porquê. e foi embora, com o mapa do tesouro nos braços, sem dizer adeus e o sorriso de lolita no bico. era um domingo bonito de sol no Rio, o ano era 84 e eu tinha uma bicileta.

2 comentários:

Clarissa disse...

demais :)

Isadora Biella disse...

nossa, como eu não tinha lido esse antes? genial!